terça-feira, 28 de setembro de 2010

CINEMA

Se o Papa é pop, Allan Kardec é “in” Uma cidade futurista e comunicação com espíritos em laptop já levaram cerca de 3 milhões de pessoas ao cinema para conferir como é a vida após a morte em “Nosso Lar”
Erick Vizoki Blockbuster é um termo norte-americano adotado pela imprensa brasileira para designar o sucesso de bilheteria de superproduções, normalmente produzidos pelo mesmo país que criou o termo. Em tradução livre, blockbuster pode significar “arrasa quarteirão”. Nunca foi muito comum definir um filme brasileiro como blockbuster. Para isso acontecer, um filme nacional precisaria arrebatar um público de pelo menos meio milhão de pessoas em sua estreia. Seria um grande feito para os padrões de bilheteria de nosso cinema. Precisaria também ser exibido em 435 salas no país, também uma aposta meio arriscada. Se e o filme em questão lotar 90 sessões especiais de pré-estreias, realizadas em diferentes localidades do país, atraindo aproximadamente 21 mil expectadores, acho que pode ser considerado um blockbuster nacional. “Nosso Lar”, filme dirigido por Wagner de Assis e que estreou no fim de semana que se iniciou em 3 de setembro, surpreendeu público e crítica a ponto de se tornar um fenômeno, preenchendo todos esses requisitos citados. Tão polêmica quanto a própria crença kardecista, fundada por Allan Kardec em 1857 com a publicação de "O Livro dos Espíritos", a produção gerou os mais diversos comentários, análises e avaliações na mídia. E a imprensa especializada se dividiu entre o conceito de produção cinematográfica e marketing institucional. Números e mais números Considerada a produção cinematográfica mais cara já realizada no Brasil (R$ 20 milhões), “Nosso Lar” já resgatou quase R$ 6 milhões do que desembolsou e atraiu cerca de 560 mil pessoas às salas de cinema em sua estreia. Só para comparar, outro blockbuster, o americano “Resident Evil IV”, estreou em primeiro lugar nas bilheterias brasileiras, no mesmo fim de semana que “Nosso Lar”. Exibido em 3D, faturou R$ 5 milhões. Isto não significa mais público. “Nosso Lar” ficou na frente, em espectadores, com mais de 400 mil pessoas comprando ingressos no primeiro fim de semana de exibição. Até agora, o filme de Wagner de Assis já arrebanhou cerca de 3 milhões de pessoas. Neste ano, a película só perde para “Chico Xavier”, de Daniel Filho, que levou mais de 600 mil pessoas aos cinemas em seu lançamento, que aconteceu em 377 salas escuras. Seu orçamento foi de R$ 12 milhões. Já é a maior bilheteria desde a retomada do cinema nacional, nos anos 90. O drama espírita também está entre as 23 produções nacionais que se inscreveram para ser o representante brasileiro no Oscar 2011, entre eles o próprio “Chico Xavier”. Espiritismo ou ficção científica? Tanto sucesso ainda não foi bem explicado, mas alguns se arriscam a dizer que o principal fator foi a curiosidade. E a repercussão de seu antecessor, “Chico Xavier”, estrategicamente lançado no centenário de nascimento do maior médium espírita do Brasil. De tradição católica, nosso país ainda não vê o espiritismo kardecista exatamente como uma religião. Sua doutrina chega a se misturar com ciência e seus rituais não têm o glamour das missas católicas ou a extravagância exacerbada dos protestantes e evangélicos e seus arrebates de fé. Mas trata, principalmente, de um assunto que incita a imaginação de todos: a vida após a morte e a reencarnação. De 2008 para cá, foram produzidos três filmes com essa temática: “Bezerra de Menezes” (2008), de Glauber Filho e Joe Pimentel; “Chico Xavier” (2010), de Daniel Filho; e “Nosso Lar” (2010), de Wagner de Assis, este último baseado em obra do espírito André Luiz e psicografada por Chico Xavier. Alguns chegam a apostar que, com o sucesso de “Nosso Lar”, a doutrina espírita ganhe mais adeptos no país. Outros dizem que, com o filme, a opção pela ideologia kardecista só foi confirmada. Ou seja, espíritas indecisos estão “saindo do armário”. Mas todas essas especulações sobre a influência ou propósito do filme nada têm a ver com os acertos e erros da produção. Que é um filme bastante institucional, está evidente. Apesar de bem feitinho e trazer as sempre bem-vindas mensagens de amor e fraternidade, é uma obra chata. Não li o livro em que o filme foi baseado, mas sei que é uma referência literária no meio. Mas tenho quase certeza que esta adaptação saiu um pouco do contexto. O tal Nosso Lar, para onde o Dr. André Luiz aporta após sua morte, no filme, parece uma cidade futurista, um lugar de arquitetura ousada e com um sistema administrativo com mais de vinte ministros (!!!). Há uma hierarquia semelhante às estruturas políticas e administrativas terrenas. Os espíritos podem ver as orações e comentários saudosos de seus entes queridos da Terra em um laptop (laptop?!?!). Há até um tipo de transporte flutuante, que ignora a lei da gravidade. Em tudo “Nossa Lar” parece remeter a uma obra de ficção científica. Mesmo assim o filme transcorre de forma quase didática, como se a proposta fosse iniciar o leigo na filosofia dessa religião. Mas essas adaptações podem colocar a perder tal intenção. Agnósticos que possam ter alguma “queda” pelo espiritismo podem ficar decepcionados. Adeptos de outras religiões podem questionar diversos aspectos desse mundo pós morte retratados na tela por Wagner de Assis. Hollywood não é aqui Na verdade, parece que a tal “onda espírita” que a mídia tanto enfocou por conta de “Nosso lar”, parece mais uma jogada de marketing. Não da comunidade kardecista em si, mas da própria mídia. No vácuo do sucesso de “Chico Xavier”, os produtores de “Nosso Lar” capricharam na ousadia. A trilha sonora, por exemplo, é do compositor e músico americano Philip Glass, um dos nomes mais importantes da música minimalista, normalmente associado, erroneamente, à new age, gênero musical próprio para reflexão e “viagens astrais”. Seguindo o exemplo do esquema hollywoodiano, o filme já tem no forno uma continuação, de acordo com reportagem da Folha Online: “Nosso Lar 2”, baseada em outro livro do espírito André Luiz, “Os Mensageiros”, também psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier,. Quer mais? A coluna “Outro Canal”, da Folha de São Paulo, divulgou que os produtores de “Nosso Lar” ficaram tão animados com a resposta do público que pretendem adaptar o longa para a TV, em forma de série, usando trechos descartados durante a produção do longa. Se há algum interessado? A Globo, claro. A rede tem investido no segmento espírita com a novela “Escrito nas Estrelas” e a série “Cura”, mostrando bom desempenho. Assim, é possível que “Nosso Lar” se torne um grande sucesso comercial também no exterior e ainda possamos exportar o seriado. E entramos na era dos “enlatados” brasileiros, que pode se iniciar com “Tropa de Elite”, outro blockbuster nacional que deve virar seriado de TV. Se a intenção dos produtores de “Nosso Lar”, que também produziram “Chico Xavier”, era divulgar a doutrina espírita com um marketing tão agressivo a ponto de realizar duas grandes produções cinematográficas, estão cometendo um erro básico: usar a doutrina mais como entretenimento do que como conscientização. Dessa forma, a qualidade de seus novos adeptos deve cair muito e a religião virar mais um simples modismo. Assista ao trailer de “Nosso Lar” http://www.youtube.com/watch?v=i-7isiQnkAA