segunda-feira, 24 de maio de 2010

CINEMA


Em 3D, “Fúria de Titãs” deixa público furioso Produção é refilmagem de clássico dos anos 80 e volta mais violento e sombrio
Perseu enfrenta a mitológica Medusa, que tinha serpentes na cabeça e olhar literalmente "petrificante".

Erick Vizoki 
Quem já tem por volta de 30 anos de idade, provavelmente assistiu, seja no cinema ou na velha Sessão da Tarde, “Fúria de Titãs” e, provavelmente, nunca esqueceu. O filme de 1981, apesar dos pesares, foi alçado à categoria de clássico, mesmo que quase não merecesse (o “quase”, explicarei mais adiante). O remake do épico mitológico grego estreou na sexta-feira 21, em circuito nacional. 

A história de “Fúria de Titãs” (Clash Of Titans, EUA/Reino Unido, 2010) segue a mesma linha de seu antecessor: Perseu (Sam Worthington), filho do deus Zeus (Liam Neeson), é criado entre os mortais e tem sua família consumida por Hades (Ralph Fiennes), o deus do inferno. Assim, Perseu inicia sua batalha contra os deuses, se unindo a Io (Gemma Arterton), sua guia espiritual, ao guerreiro Draco (Mads Mikkelsen) e ao rei-fera Acrisius (Jason Flemyng), na tentativa de salvar sua amada Andrômeda (Alexa Davalos), que deverá ser sacrificada para que os deuses do Olimpo não enviem o terrível monstro Kraken para destruir a cidade de Argos. Dirigido por Louis Leterrier (“O Incrível Hulk”), a produção da Legendary Pictures para a Warner Bros. tenta o que todo remake tenta: superar o original, com promessas de mais ação, mais efeitos especiais e de adequar a obra aos dias atuais. Tudo isso sempre com as melhores intenções, dizem roteiristas, diretores e produtores. 

No quesito ação, efeitos especiais e belas cenografias, o público está bem servido. Como no original dirigido por Desmond Davis, este também deverá ter bastante futuro nas futuras “Sessões da Tarde”, com as novas telinhas HD. Para garantir (ou pelo menos tentar) uma adaptação mais ao gosto da geração “Mortal Kombat” e “Senhor dos Anéis”, o roteirista escolhido foi o novato Travis Beacham, que está entre os que prometeram um tom mais sombrio à reedição do clássico de 1981. 

Mas o filme, por falar em deuses, comete seus pecados. O maior deles é trocar talento e dedicação cinematográfica pela avalanche, cada vez mais comum, de efeitos visuais impressionantes, muito movimento, bastante gosma e os indispensáveis clichês do tipo “não encarem a vadia!”, na sequência onde os heróis enfrentam a mitológica Medusa. E há outro agravante, ainda maior, mas aí a culpa pode ser da megaprodução “Avatar”, que foi concebido para ser exibido em 3D, mas que se deu bem também na versão 2D: Leterrier fez o caminho inverso, produzindo o filme em 2D e depois, devido ao assombroso sucesso do filme de James Cameron, o converteu para 3D, e nesse tipo de exibição deixou o público fulo da vida com o péssimo resultado. Por isso, prefiram a versão tradicional, em 2D, para não passarem raiva. 

Na atuação, à frente do grupo dos bonzinhos está Sam Worthington, o carismático alien azul de Avatar, em mais uma interpretação insossa. Os únicos dois nomes que teriam chances de salvar o filme da negligência total, em termos de boa atuação, seriam Liam Neeson (“A Lista de Schindler”) e Ralph Fiennes (“Harry Potter e o Enigma do Príncipe”), atores experientes que não foram bem aproveitados pelo diretor Leterrier. Enfim, nunca será um clássico como a água da fonte em que bebeu. 

Fim de uma era, começo de outra

 
As lendárias criações de Harryhausen: à esquerda o ciclope de "A 7ª Viagem de Sinbad"; à direita, a famosa sequência de luta com esqueletos em "Jasão e o Velo de Ouro". 

Chegamos às inevitáveis comparações entre remake e original. Se na nova produção falta atuação e sensibilidade, no velho “Fúria de Titãs” (Clash Of The Titans, EUA, 1981) elas transbordavam. Para começar, apenas um nome era suficiente para conjugar gerações diferentes de cinéfilos nas salas escuras: Lawrence Olivier, no papel de Zeus, claro. 

O ator, especializado em papéis shakespearianos, garantia a ida dos adultos apreciadores de bons filmes ao cinema, e o argumento e efeitos especiais traziam a garotada. Além dele, pelo menos mais dois nomes competentes destacavam-se no cartaz do filme e na tela: Ursula Andress (“007 Contra o Satânico Dr. No”), interpretando Aphrodite, e Maggie Smith (atualmente a Profª. Minerva, da série Harry Potter), como Thetis. A trama também envolvia todos os personagens, em um núcleo Zeus-Perseu-Hades. 

Na nova investida, os deuses são quase coadjuvantes. Mas o grande nome, de fato, no filme original, não aparecia na tela. Ele não, mas a sua participação era o verdadeiro espetáculo. Trata-se de um lendário profissional de cinema, o animador especializado na técnica stop motion, Ray Harryhausen. 

A animação stop motion consiste em dar vida a objetos inanimados filmando-os quadro a quadro: para cada segundo de filmagem são necessários 24 fotogramas em sequência para causar a ilusão de movimento. E Ray Harryhausen reinou absoluto em sua época nessa técnica. Nascido em 29 de junho de 1921, ainda criança Ray ficou fascinado pelo trabalho de Willis O’Brien, responsável pelos efeitos especiais de “King Kong” (1933). A partir daí decidiu seguir a mesma carreira e tornou-se o profissional mais requisitado de Hollywood para efeitos especiais em filmes que tivessem criaturas bizarras e monstruosas. 
Entre os grandes filmes que animou estão clássicos como “Jasão e o Velo de Ouro” (Jason and the Argonauts, 1963), “A Viagem de Ouro de Simbad” (The Golden Voyage of Simbad, 1973), e “Simbad e o Olho do Tigre” (Simbad and the Eye of the Tiger, 1977), todos com animações fantásticas para uma época em que a animação computadorizada ainda nem sonhava em existir.

Mas Harryhausen também colocou seu talento a serviço da mediocridade, como em “Mil Séculos Antes de Cristo” (One Million Years B. C., 1966), que também foi exibido na TV com o título “Quando os Dinossauros Dominavam a Terra”. Este filme, apesar de bem feito e com a grife Harryhausen, mostrava duas tribos de homens pré-históricos que lutavam entre si: uma de homens e mulheres morenos, sujos e violentos e outra de pessoas loiras, de olhos claros, limpinhos e bonzinhos. Dada a época, só faltou uma bandeirinha para a tribo loira com os dizeres “Nós somos os ancestrais dos americanos”, e na dos morenos, “Outros”. Além disso, a história colocava homens e dinossauros convivendo na mesma época, numa espantosa barbeiragem arqueológica. 
Fúria de Titãs” foi o último trabalho do animador para o cinema. As belas sequências de vôo do cavalo alado Pégaso, a simpática corujinha mecânica Bubo (outro item para atrair a petizada aos cinemas), a sombria Medusa e o monstro Kraken ficaram na memória de crianças e adultos, que se deslumbraram na ocasião, apesar do mesmo roteiro chinfrim e de George Lucas já ter boquiaberto o mundo com sua “Guerra nas Estrelas”. Seu trabalho ainda é reverenciado por diretores como Steven Spielberg, George Lucas, Tim Burton e James Cameron, entre outros. O que faltou nesta “Fúria” de 2010, foi justamente a sensibilidade e a dedicação que existia em um tempo em que fazer cinema também envolvia paixão e talento, mesmo que fosse para puro entretenimento. 

SERVIÇO 
Fúria de Titãs (Clash Of Titans, EUA/Reino Unido, 2010) 
Direção: Louis Leterrier 
Elenco: Sam Worthington, Pete Postlethwaite, Mads Mikkelsen, Gemma Arterton, Alexa Davalos, Ralph Fiennes, Liam Neeson. 
Gênero: Aventura 
Duração: 118 min. 
Distribuidora: Warner Bros.

Assista ao trailer de "Fúria de Titãs"http://www.youtube.com/watch?v=4F9Oc5e4B8oAssista ao trailer de "Fúria de Titãs" (1981)http://www.youtube.com/watch?v=toy7sDPoMKs